Ainda a propósito da atual cacofonia em torno da guerra na Ucrânia — Texto 3. A guerra na Ucrânia coloca o euro e a União Europeia em crise. Por Enrico Grazzini

 

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

10 m de leitura

Texto 3. A guerra na Ucrânia coloca o euro e a União Europeia em crise

 Por Enrico Grazzini

Publicado por em 16 de junho de 2022 (original aqui)

 

Custos de mercadorias que se elevam ao céu. Taxas de juro crescentes para conter a inflação. E a Itália está cada vez mais em risco (de acordo com os mercados). O equilíbrio precário da zona euro corre o risco de se degradar.

 

A guerra na Ucrânia está a causar desastres também económicos. Os custos das matérias-primas, da energia e dos alimentos dispararam em todo o mundo. Subiram até 600% em apenas alguns meses, e as primeiras vítimas da crise – para além dos países mais pobres que correm o risco de passar para uma situação de fome em massa – são o euro e a União Europeia. Desde que a invasão russa da Ucrânia começou, os preços começaram a disparar, o FED, o banco central dos EUA, e mais tarde os outros grandes bancos centrais, aumentaram as taxas para conter a inflação, Wall Street, os mercados bolsistas e os mercados financeiros europeus tornaram-se turbulentos e começaram a cair. A Europa é o espaço económico que sofre mais do que os EUA, a China e os outros países asiáticos avançados. O resultado é que a Itália em particular – que se encontra entre os países mais endividados e de menor crescimento na Europa – é cada vez mais vista como um país de risco pelos mercados, e estão a aumentar o preço dos seus empréstimos ao governo italiano. Se a Itália continuar debaixo de fogo, então o equilíbrio precário da zona euro estará também em risco. A partir daqui, é todo o edifício da moeda única europeia que poderia cair em ruínas, e com ele pode cair também o palácio dourado da União Europeia no qual residem 27 inquilinos muito quezilentos. O problema do euro, porém, não é contingente: é, pelo contrário, profundamente estrutural e altamente político.

O neoliberalismo é o problema genético da arquitetura do euro. O capital é livre de se movimentar instantaneamente como deseja mesmo dentro da zona euro e o euro e os estados estão assim à completa mercê dos mercados e da especulação. Desde o início, o Bundesbank, o banco central alemão, queria que os mercados fossem os verdadeiros senhores da moeda europeia. Assim, quando existem pontos de crise, como na Itália, Espanha e Grécia de hoje, o capital foge para os títulos de dívida da Alemanha, que são considerados um porto seguro (tal como o dólar). Assim, enquanto os países mediterrânicos pagam cada vez mais caro a sua dívida, na proporção em que a Alemanha paga cada vez menos a sua dívida, e o spread, o diferencial do custo da dívida, alarga-se. Não há escapatória: este mecanismo perverso que divide os países da zona euro só pode ser alterado se a política europeia tiver uma reviravolta de 180 graus, e apenas se os governos concordarem em alterar os tratados fundadores da UE. Há guerra na Europa, crise energética, inflação, crise financeira global, crise das cadeias de produção internacionais. Os pequenos passos já não são suficientes. O BCE promete fazer tudo para combater a especulação e a propagação, mas muitos na comunidade financeira estão céticos de que os remendos se possam manter por muito tempo. A Europa corre o risco de se desmoronar face a novos e terríveis desafios. Não é coincidência que nos últimos dias Draghi e Macron em Paris, e depois, em Roma, Ursula von der Leyen e Sergio Mattarella tenham discutido precisamente como rever os tratados e financiar a saída da crise. E também discutiram como tentar chegar ao fim da guerra ucraniana o mais depressa e o melhor possível. No entanto, não é de modo algum certo que os seus esforços serão recompensados. O condomínio da UE está demasiado lotado para conseguir pôr todos de acordo.

Entretanto, como é sabido, o Banco Central Europeu liderado por Christine Lagarde, confrontado com uma inflação que atingiu agora cerca de 7-8% na Europa, decidiu bloquear o plano de compra de obrigações públicas europeias e aumentar as taxas de juro muito cautelosamente a partir do segundo semestre do ano do atual zero para 0,25 e depois 0,50. Os mercados, considerando insuficiente a política restritiva de Lagarde, reagiram mal: imediatamente o rendimento das obrigações italianas a dez anos subiu para 4%. Como o custo da dívida aumenta em paralelo com os rendimentos das obrigações, a sustentabilidade da dívida italiana e do euro estão mais uma vez na zona de perigo. A dívida pública italiana aumentou para mais de 2750 mil milhões, ou cerca de 148% do PIB projetado este ano. O custo da dívida está a subir enquanto as previsões de crescimento do PIB estão a descer. Olhando para o futuro, se os rendimentos não caírem, a Itália dificilmente poderá refinanciar a sua dívida nos mercados sem a ajuda do BCE.

Mario Draghi, o atual Primeiro-Ministro italiano, disse há apenas alguns meses que não se devia preocupar demasiado com o aumento da dívida pública e que os défices eram (corretamente) necessários para sair da crise: estava confiante na recuperação pós-Covid e que o BCE imprimiria sempre tanto dinheiro quanto fosse necessário para cobrir as dívidas da Europa. Mas o seu otimismo provou ser ilusório. No entanto, conhece muito bem as regras do euro e sabia que, em caso de inflação, o BCE está de mãos atadas. De acordo com o Tratado de Maastricht, o BCE tem a tarefa virtualmente exclusiva de combater a inflação, não tendo de se preocupar com o desemprego e o (de)crescimento económico. Desde a criação do euro, o Bundesbank impôs ao BCE a missão exclusiva de combater a inflação: parece que os alemães, após a experiência da hiper-inflação de Weimar nos anos 20, têm um terror congénito face ao  aumento dos preços.

Neste contexto, Lagarde, com a inflação a aumentar para 7-8% ao ano, sob pressão dos alemães e dos holandeses, foi forçada a decidir uma manobra monetária restritiva para mostrar a sua vontade em repor o crescimento dos preços em cerca de  2% ao ano, como ditado pelo estatuto do BCE. No entanto, o aumento cauteloso do custo do dinheiro decidido pelo banco central provocou uma forte reação dos mercados, que acreditam que a inflação permanecerá elevada e, portanto, exigem rendimentos e lucros mais elevados para conceder os seus empréstimos aos governos europeus. Neste contexto, o custo da dívida privada e pública tende a aumentar e o crédito bancário tende a diminuir. Provavelmente só o fim da guerra na Ucrânia porá fim a esta tendência. estrangular o crédito e a economia quando esta entra em recessão devido à guerra e ao aumento dos custos energéticos parece uma coisa idiota e de loucos. E de facto é! Até Lagarde sabe disso. Contudo, apesar das hipócritas reprovações de Francesco Giavazzi e Federico Fubini no Corriere della Sera, neste caso a chefe do BCE não tem culpa: de facto Lagarde não pode deixar de seguir as regras idiotas do Tratado de Maastricht que a obrigam a reduzir a inflação a todo o custo e nunca a obrigam a financiar os Estados do euro, mesmo que estes estejam sujeitos – como é atualmente o caso da Itália e de outros países mediterrânicos – a ataques especulativos por parte dos mercados.

Esta é a característica do BCE que o torna diferente de todos os outros bancos centrais: devido às regras impostas por  Maastricht, o BCE não pode intervir diretamente para salvar um Estado de ataques especulativos, quanto mais para financiar défices públicos, mesmo que sejam défices justos e feitos, por exemplo, para investir na saúde, conversão energética, educação ou defesa. O BCE só e exclusivamente pode intervir para financiar (e salvar) bancos na zona euro. Assim, até agora o BCE tem sido capaz de socorrer os Estados emprestando dinheiro aos bancos a taxas de juro zero ou abaixo de zero; os bancos comprariam então, por sua vez, as obrigações do governo dos países do euro e reciclá-las-iam ao BCE para mais empréstimos. O verdadeiro problema é que hoje em dia os bancos já não têm o mesmo incentivo que antes para comprar títulos do governo italiano porque a inflação é atualmente mais elevada do que os rendimentos. Daí a crise da dívida soberana. E daí também a crise dos bancos: o valor dos seus títulos de dívida comprados no passado diminuiu, de facto, muito devido à inflação. Para dar um exemplo: um título comprado há alguns meses com um rendimento de 2% ao ano perdeu valor com a inflação atual a 7%. É por isso que os bancos caíram a pique na bolsa de valores. O risco é que o duplo défice, do Estado e dos bancos, possa explodir. Uma mistura verdadeiramente explosiva.

Até agora, o BCE, através dos bancos, tem sido capaz de “salvar” os estados mais frágeis financeiramente. O BCE acumulou 20-25% das dívidas públicas da zona euro no seu balanço. Mas agora, com a inflação europeia a 7%, há o redde rationem, o acerto de contas. Todo o castelo monetário do euro está de novo em risco, tal como estava em 2012 quando Draghi teve de proferir a famosa frase: “Farei tudo para defender o euro e, acreditem, será suficiente” para impedir a especulação e assim evitar o colapso da moeda europeia. Draghi foi bem sucedido, houve deflação e ele ganhou com o seu bluff, mas hoje com a inflação a 7% é difícil para Lagarde fazer malabarismos. Se ela ajudasse descaradamente a Itália e os países mediterrânicos em dificuldades, o Tribunal Constitucional alemão acusá-la-ia de exceder os seus poderes e de levar a cabo atividades extra legem. Ela poderá apresentar alguns remendos, mas haverá que ver se os mercados ficarão satisfeitos.

Uma vez que o BCE, segundo Maastricht, não pode dar cobertura aos Estados endividados em dificuldades, o espectro da Troika (BCE, UE e Fundo Monetário Internacional) reaparece na cena europeia, ou seja, as instituições europeias e internacionais que, em nome dos credores (bancos comerciais e alta finança) batem às portas dos devedores para cobrar dívidas. Obviamente, a intervenção da Troika em Itália causaria imensos problemas políticos e de ordem pública. É difícil para qualquer governo italiano aceitar a intromissão da Troika no nosso país, como aconteceu na pequena Grécia com resultados desastrosos. No entanto, ninguém sabe o que fazer quanto ao espectro da falência europeia. Assim, tal como os sonâmbulos, todos estão a proceder de forma algo cega. Os italianos e franceses são os mais ativos na procura de soluções para a crise. Em Roma, o Presidente Mattarella foi claro com o Presidente da Comissão Europeia: após a invasão russa da Ucrânia por Putin, o Programa Next Generation da UE já não é suficiente. Seria necessário um novo Plano de Recuperação de centenas de milhares de milhões para apoiar a economia europeia, e o BCE teria de ser autorizado a financiar dívidas devido ao aumento dos preços das matérias-primas. A dívida europeia teria de ser apoiada através da emissão de Eurobonds. As despesas de defesa europeia e a conversão energética podem ser apoiadas com novas euro-obrigações. Em Paris, Draghi e Macron discutiram propostas semelhantes.

O problema é que o governo tricolor alemão – coligação de sociais-democratas, verdes e liberais – liderado por Olaf Sholz está a opor resistência. O poder de decisão sobre toda a Europa é, como sempre, principalmente detido pelos alemães e pelos países do norte da Europa. E aí reside o ponto de rutura. Até agora, o governo alemão, de forma contraditória, anunciou que está mais interessado em seguir as velhas regras da austeridade e do equilíbrio orçamental do que em seguir as que são necessárias para sobreviver à crise.

De facto, haveria soluções no papel: os quatro maiores países europeus, Alemanha, França, Itália e Espanha, poderiam formar uma Cooperação Reforçada – como Romano Prodi (e também eu próprio já propusemos – e impulsionar com sucesso a criação de um fundo orçamental comum e o lançamento de euro-obrigações. Além disso, os governos em Itália e em países individuais poderiam combater a recessão através da emissão gratuita de obrigações públicas denominadas em euros, totalmente compatíveis com o regime da zona euro. Um pouco como os subsídios para a construção mas em muito maior escala (e obviamente com modalidades diferentes).

As soluções existem, mas os políticos europeus estão a vacilar face a escolhas que são decisivas. Scholz terá de tomar uma decisão clara muito em breve: até porque esta crise é global e os capitais internacionais – antes de mais, maioritariamente capital anglo-americano – poderiam retirar-se subitamente dos mercados europeus para cobrir perdas nos seus mercados domésticos; e poderiam então provocar um colapso generalizado do euro, como estava prestes a acontecer há dez anos com a crise do subprime.

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O autor: Enrico Grazzini [1953- ], licenciado em Ciências Políticas, e com uma pós-graduação em comunicação de massas, é um jornalista económico e ensaísta italiano. Tem trabalhado como consultor estratégico empresarial para empresas multinacionais e nacionais líderes. Trabalhou em várias profissões, incluindo operário de fábrica, representante sindical, empregado de escritório, barman, e após a graduação, licenciado desempregado, investigador, jornalista, consultor estratégico empresarial, e redator de ensaios. Editou e foi co-autor do livro electrónico publicado pela MicroMega em 2015: “Para uma moeda fiscal gratuita. Como sair da austeridade sem quebrar o euro“, com prefácio de Luciano Gallino. Escreveu “Manifesto pela Democracia Económica“, Castelvecchi Editore, 2014; “Il bene di tutti. L’economia della condivisione per uscire dalla crisi“, Editori Riuniti, 2011; “L’economia della conoscenza oltre il capitalismo“, Codice Edizione, 2008. É colaborador de Correire della Sera, MicroMega, Il Mondo, Social Europe, Economia e Politica, Sbilanciamoci.info, Prima Comunicazione.

 

 

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